Imagem: Marta Mazzanti. La casa de papel. Behance.
ATENÇÃO: CONTÉM SPOILER.
Estado malvado e ladrões carismáticos
A série La Casa de Papel finalmente divulgou a quinta e última temporada. O drama espanhol lançado em 2017 cativou o público e conseguiu grandes premiações encenando um assalto ao Banco Central da Espanha. O show consegue prender a atenção, criando tensões e expectativas no telespectador, levando-o quase ao desespero por querer saber logo o desfecho da trama.
O enredo tem como base personagens carismáticos, cada perfil com sua particularidade, o que traz um envolvente clima de trabalho em equipe. Contudo, a espinha dorsal da série é personificada no papel do “professor”, Sérgio Marquina, que é o personagem responsável por reunir os membros da gangue, ensinar o plano e dirigir as ações do grupo. Não obstante, o professor pudesse ser considerado líder e mentor intelectual do crime, ele é elevado a praticamente ao status de um super- herói, com absurda genialidade e todas as cartas na manga, sendo capaz de comandar uma quadrilha internacional e enfrentar todo o aparelho de Estado espanhol, conquistando ainda a simpatia da população e colocando-a contra os seus governantes.
Embora o professor ganhe o seu destaque, para acompanhar a série é preciso aceitar todos os feitos pitorescos que cada personagem eventualmente realize. Para quem conseguiu assistir até o final, se torna desnecessário especificar cada um desses acontecimentos, mas vale a pena chamar a atenção para o desfecho da história.
A trama se faz valer da desconstrução da burocracia Estatal, apresentando-a como ilegítima e nociva à sociedade, ao mesmo tempo em que é complacente com a criminalidade, uma vez que os criminosos escolhem como alvo um suposto mecanismo de opressão, materializado na figura do Banco Central. Enquanto o policial responsável por perseguir os bandidos é apresentado como um ser cruel e despudorado no exercício de seu poder, a gangue de assaltantes ganha contornos heroicos e revelam falhas e virtudes tipicamente humanas.
É nesse contexto que a solução para o escape do banco é apresentada. Valendo-se da figura do abuso de autoridade como uma forma de opressão social, aliada a teorias conspiratórias, surge como solução, devolver ao banco latão ao invés de ouro. Desse modo, o policial precisaria aceitar a fraude para impedir o colapso econômico do país, uma vez que o ouro verdadeiro teria sido extraviado e ainda que os assaltantes tivessem sido capturados, seria impossível reaver o ouro, graças à genialidade do professor. O plano era retirar o ouro do banco pelo encanamento de esgoto, enquanto os assaltantes sairiam mediante suposta devolução do ouro, chantageando o chefe de polícia a aceitar o latão e perdoar os criminosos, sob risco de ter a farsa revelada e causar o colapso econômico.
Mas como ninguém saberia que era latão ao invés de ouro? Muito bem, para tanto, o plano do professor era usar do instrumento de segredo de Estado.
Sigilo como regra?
No genial plano do professor, ninguém precisaria saber que o ouro era, agora, latão, porque o valor do ouro é apenas fiduciário. Ou seja, ninguém precisaria ter acesso ao ouro, bastando apenas acreditar que ele existe e está seguro, cumprindo então o propósito de garantia de valor para o papel moeda.
Acontece que diferentemente do fantástico mundo da Casa de Papel, a realidade não é bem essa. Para uma melhor análise, o ideal seria investigar os instrumentos administrativos do governo espanhol. Contudo, se tratando de um governo democrático, que preza pela transparência e cumprimento de normas e padrões internacionais, no intuito de qualificar as instituições de Estado, é possível fazer uma comparação com as normas vigentes no Brasil.
Conforme publicação do Banco Central do Brasil –BCB (2021), o ouro faz parte das reservas internacionais e está sujeito a seis tipos de controle:
“i) controle interno do Departamento das Reservas Internacionais (Depin), por intermédio da Divisão de Controle Interno (Dicoi); ii) controle interno pelo Departamento de Riscos Corporativos e Referências Operacionais(Deris); iii) controle interno da Auditoria do BCB; iv) controle externo ao BCB, mas interno ao Poder Executivo Federal, feito pela Controladoria-Geral da União (CGU); v) controle externo do Tribunal de Contas da União (TCU); e, por fim, vi) controle externo exercido por auditor independente. (Banco Central do Brasil, 2021).”
Ou seja, ainda que seja competência privativa do BCB ser depositário das reservas oficiais de ouro, existe ainda o controle externo do Tribunal de Contas da União – TCU, além de auditor externo independente.
Comparando o cenário alegórico de La Casa de Papel com a realidade, o instrumento de “segredo de Estado” utilizado no desfecho da trama, teria sentido?
A Lei de Acesso à Informação
No Brasil existe a Lei de Acesso à Informação – LAI, Lei 12.527 de 2011, que garante o sigilo de até 25 anos, em grau ultrassecreto, para informações que ameacem a segurança nacional ou da sociedade, como no exemplo colocado pela série espanhola. Nessa mesma lei, é conferido a qualquer cidadão o direito de solicitar a informação, a qual lhe será negada em caso de informação classificada. Conforme a lei prevê, caberá ao cidadão recorrer da negativa ao acesso da informação demanda através de recurso administrativo à instância superior do órgão que lhe negou acesso, podendo recorrer à instância máxima desse órgão em caso de outra negativa, seguindo o recurso para a Controladoria-Geral da União – CGU, até que finalmente, caso novamente a informação lhe seja negada, o recurso se encaminha para a Comissão Mista de Reavaliação de Informações.
O regimento interno dessa comissão se dá pela Resolução Nº 1 de 21 de Dezembro de 2012, a qual dispõe em seu art. 2º:
“Art. 2º Comissão será integrada pelos titulares dos seguintes órgãos:
I – Casa Civil da Presidência da República, que a presidirá;
II – Ministério da Justiça;
III – Ministério das Relações Exteriores;
IV – Ministério da Defesa;
V – Ministério da Fazenda;
VI – Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão;
VII – Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República;
VIII – Advocacia-Geral da União;
IX – Controladoria-Geral da União; e
X – Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
Parágrafo único. Cada integrante indicará suplente a ser designado por ato do Presidente da Comissão. (Presidência da República, 2012).”
Deste modo, vemos que o instrumento de segredo de Estado envolve um esforço orquestrado, cujo sentido na trama se faz coerente dentro da perspectiva conspiratória contra a burocracia estatal, conforme já mencionado.
Porém, ainda que haja a anuência de todos os integrantes da Comissão Mista de Reavaliação de Informações, no Decreto 7.724 de 16 de Maio de 2012, em seu art. 45, consta que:
“Art. 45. A autoridade máxima de cada órgão ou entidade publicará anualmente, até o dia 1º de junho, em sítio na Internet:
I – rol das informações desclassificadas nos últimos doze meses;
II – rol das informações classificadas em cada grau de sigilo, que deverá conter:
a) código de indexação de documento;
b) categoria na qual se enquadra a informação;
c) indicação de dispositivo legal que fundamenta a classificação; e
d) data da produção, data da classificação e prazo da classificação;
III – relatório estatístico com a quantidade de pedidos de acesso à informação recebidos, atendidos e indeferidos; e
IV – informações estatísticas agregadas dos requerentes.
Parágrafo único. Os órgãos e entidades deverão manter em meio físico as informações previstas no caput, para consulta pública em suas sedes. (Presidência da República, 2012).”
Assim sendo, ainda que a informação tenha sido classificada com grau ultrassecreto, faz-se obrigatório a divulgação do código de indexação do documento, bem como o teor que torne possível sua identificação. E há de se convir, que após um roubo monumental, como o caso encenado pelo roubo ao Banco Central da Espanha, impedir uma auditoria independente de fiscalizar suas reservas internacionais, impondo grau máximo de sigilo às reservas de ouro que haviam sido roubadas e que agora foram supostamente devolvidas, não é muito encorajador para o bom funcionamento dos mercados. Seria no mínimo suspeito, para não dizer inaceitável!
Além do mais, ainda que fosse feito o acordo como aconteceu na série, bastaria mais empenho dos serviços de investigação para continuar acompanhando o bando – que eles mesmos encobertaram -, para rastrear o paradeiro da reserva de ouro, seguindo-os até o país vizinho, Portugal.
Mas, novamente, para quem chegou até o último episódio, qualquer acontecimento, por mais absurdo que fosse, estaria de acordo com a trama e bastaria que o professor e seu grupo escapassem através de sua heroica genialidade, para a satisfação geral do público.
E então, diante do que foi exposto sobre o funcionamento das políticas de segredo de Estado e seus instrumentos normativos, dos mecanismos de gestão da Administração Pública e dos meios que cidadão dispõe para o exercício de sua cidadania, será que uma nação como o Brasil, está suficientemente capacitada para impedir criminosos como o professor e sua gangue? E para impedir a crueldade e o abuso de poder das autoridades de Estado? Quais mecanismos ainda precisam ser aperfeiçoados? E a Espanha, será que possui os meios adequados para lidar com situações como essas fora do universo de La Casa de Papel?
Referências
BANCO CENTRAL DO BRASIL. Relatório de Gestão das Reservas internacionais. Relatório de Gestão das Reservas Internacionais, Brasília, v.13. mar de 2021BRASIL, DECRETO Nº 7.724, DE 16 DE MAIO DE 2012. Regulamenta a Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, que dispõe sobre o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do caput do art. 5º , no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição. Brasília, DF: Presidência da República, 2012. Disponível em: Decreto nº 7724 (planalto.gov.br). Acesso em: 06/12/2021.. Disponível em: GESTAORESERVAS202103-relatorio_anual_reservas_internacionais_2021.pdf (bcb.gov.br). Acesso em: 06/12/2021.
BRASIL, DECRETO Nº 7.724, DE 16 DE MAIO DE 2012. Regulamenta a Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, que dispõe sobre o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do caput do art. 5º , no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição. Brasília, DF: Presidência da República, 2012. Disponível em: Decreto nº 7724 (planalto.gov.br). Acesso em: 06/12/2021.
BRASIL, LEI Nº 12.527, DE 18 DE NOVEMBRO DE 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º , no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei nº 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências.Brasília, DF: Presidência da República, 2011. Disponível em: L12527 (planalto.gov.br). Acesso em: 06/12/2021.
BRASIL, RESOLUÇÃO Nº 1, DE 21 DE DEZEMBRO DE 2012. Aprova o Regimento Interno da Comissão Mista de Reavaliação de Informações. Brasília, DF: Presidência da República, 2012. Disponível em: www.planalto.gov.br/CasaCivil/CMRI/resolucoes/RES12012.htm. Acesso em: 06/12/2021.