“Paradigma emergente em gestão de empresas e seus efeitos na gestão de pessoas para a atividade do bibliotecário”
César Ameno.
Resumo:
A criatividade humana representa poderoso mecanismo de desenvolvimento. Graças a ela é possível à humanidade criar vínculos por entidades transcendentais em uma complexa teia de interações. Essa complexidade acaba por causar sofrimento e conflitos, levando a práticas desumanas de interações, como a escravização. Entretanto, quando essas interações são devidamente trabalhadas surge uma fonte imensurável de valor, formada por ativos intangíveis, que pode se transformar em capital intelectual. Os sistemas de normas entre as relações humanas precisam ser exercitados na esfera cultural, em uma relação de complementaridade. O bibliotecário, sendo a liderança responsável pelo funcionamento de uma unidade de informação, deverá estar apto para intermediar as interações em seu ambiente de trabalho, incentivando a liderança e o empreendedorismo, assim como para permitir um ambiente fértil ao aprendizado.
Palavras-Chave: Ativo intangível. Capital intelectual. Escravização. Trabalho. Empreendedorismo. Bibliotecário.
Tudo acaba, estraga, envelhece, morre. O que seria capaz de fazer tanto? A vida! Ela obriga, ameaça, fere, castiga, une, prende, separa, cura, constrói, compraz, faz, desfaz. Quando não fazemos o que devemos, matamos parte da vida que temos. Mas ela não morre, a vida vive… Dádiva ou fardo? O mesmo. Assim como a vida e a morte, o tudo e o nada, o começo e o fim. Mas a vida vive. Pois, apesar da morte, a vida é eterna. Pois, apesar do fim, o infinito.
O ELEMENTO HUMANO E OS ATIVOS INTANGÍVEIS
A busca por satisfazer as próprias necessidades é fator motivacional comum a todos. Cada necessidade abarca diferentes dimensões da vida humana, da mais indispensável à mais frugal. Para o professor e historiador Yuval Noah Harari, a característica mais importante que diferencia o ser humano na natureza é a sua capacidade criativa. [1]
Segundo ele, a impossibilidade de imaginar e dar vida ao que foi imaginado é o ponto chave que impede os chimpanzés bonobos de se organizarem em estruturas sociais semelhantes às dos seres humanos. Graças a essa habilidade a humanidade consegue criar vínculos por entidades transcendentes por meio de uma crença comum, valores comuns, interesses em comum… E por isso os bonobos não se agrupam em bandos maiores que 70 indivíduos.
Além dessa característica comum a todos os humanos, existe também uma singularidade em cada indivíduo que se molda ao mesmo tempo em que interage com as distintas singularidades pertencentes às personalidades dos indivíduos. As potencialidades dessas motivações, quando devidamente trabalhadas, produzem algo chamado ativo intangível, que pode ser transformar em capital intelectual.
O efeito dessas habilidades produz uma teia complexa de interações que poderiam ser discutidas inesgotavelmente. Contudo, direciona-se a atenção por ora para os paradigmas emergentes em gestão de empresas e pessoas, em uma reflexão sobre a escravização e as relações de trabalho, delineando a atuação do bibliotecário.
ESCRAVIZAÇÃO X RELAÇÕES DE TRABALHO
Ainda que o movimento iluminista e a revolução francesa no final do século XVIII tenha sido um marco temporal importante para a propagação de ideais humanitários, o movimento abolicionista ofereceria um prisma interessante de seu poder em uma atitude de cooperação entre escravizados e não escravizados, com a derrota dos Confederados nos Estados Unidos da América – EUA, em 1865. Nesse momento a mensagem transmitida à humanidade era que mesmo os nãos escravos não se contentariam em concordar ou discordar sobre a condição humana de escravidão, estariam dispostos então a declarar guerra pela liberdade consolidada em uma identidade cultural.
As guerras no Brasil em torno do abolicionismo aconteceram por movimentos de revoltas, levantes e rebeliões, e não obtiveram a vitória declarada no campo de batalha. A abolição aconteceu em demorados processos burocráticos, sendo o mais relevante a publicação da Lei Áurea, em 1888. [2]
Com efeito, surgiriam então novas questões envolvendo os vínculos laborais fora da esfera familiar, a remuneração, vínculos empregatícios, entre outros.
Se o fim da escravidão no Brasil aconteceu no contexto de suas particularidades, essas particularidades existiram também pelos anos em que ela perdurou.
Devido às características de ocupação do território brasileiro e o predomínio do extrativismo e da atividade agropecuária, a exploração do escravizado se concentrava no campo, em um regime conhecido como “plantation”. Mas, como se sabe, os centros urbanos que se formavam também utilizavam o trabalho escravo. Além do escravo doméstico, existiam também os escravos de ganho e os escravos de aluguel. Eram pessoas que circulavam entre a sociedade e arrecadavam dinheiro para o seu dono através de atividades análogas aos serviços informais ou autônomos, realizando todos os tipos de atividades econômicas, bem como ofícios de habilidades especializadas. [3]
As marcas sociais dessa exploração macabra do trabalho humano produziriam uma cicatriz cultural que levaria a uma série de dificuldades.
PARADIGMAS: DO ESTADO NOVO AO MEI
Seria Getúlio Vargas, então, que em 1930 tomaria a presidência da república e, em 1937, daria início a uma ditadura que duraria até 1945. No contexto da industrialização brasileira promovida por Getúlio e visando alocar a massa de desalentados em trabalhos industriais, o conjunto precário de leis do trabalho que começava a surgir, seria então compilado e adaptado, para ser anunciado na forma da Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT, em 1943. [4]
A legislação visava solucionar o problema da precariedade nas relações de trabalho que tinham sido herdadas durante os anos de escravização. Um dos primeiros documentos semelhantes à carteira de trabalho foi o livro de registros com as informações sobre os menores trabalhadores, decretado em 1891 pelo presidente Deodoro da Fonseca. O decreto previa que empresas que empregassem trabalhadores com menos de 18 anos deveriam efetuar os registros referentes ao trabalhador. [5] Futuramente, Vargas substituiria a carteira do trabalhador agrícola pela carteira profissional; [6] que depois, em 1969,durante a ditadura de Costa e Silva, se tornaria a carteira de trabalho e previdência social – CTPS.
Garantindo a profissionalização por meio de uma carteira de trabalho, onde o então funcionário passaria a receber um salário fixo e outras formas de recompensa, a CLT atendia os propósitos das fábricas e da grande massa de trabalhadores, mas quais efeitos a política do Estado Novo teria provocado para as atividades dos trabalhadores autônomos, profissionais liberais, ou para as relações de livre negociação que deveriam existir em uma sociedade de trabalhadores livres?
O remédio utilizado por Vargas, aliado à máquina propagandística do governo e a perseguição aos opositores, acabou por causar dependência e outros efeitos adversos. Os atos burocráticos não possuem o condão de amparar uma debilidade cultural subjetiva, ainda que produzam quaisquer efeitos concretos. A norma é útil para amparar o conhecimento consolidado que é compartilhado em uma cultura, mas qual utilidade teria se servisse apenas para que a obedecessem?
A criação de empregos e o quanto se paga por determinado trabalho são questões que não se resolvem por desdobramentos burocráticos. A busca por profissionais depende da realização de empreendimentos. A realização desses empreendimentos depende desses profissionais. Muitos empreendimentos demandam muitos profissionais. De modo correlacionado, muitos profissionais e poucos empreendimentos geram desemprego. Uma alta demanda por profissionais – o que ocorre com alto número de empreendimentos-, lhes coloca em posição de barganha quanto às condições de realização do trabalho e de remuneração, e possuindo melhores qualificações conseguem melhores colocações. [7]
Ao longo do século XX o modelo mecanicista de gestão de pessoas, que remetia aos tempos industriais, foi substituído pelo modelo humanista, em uma tentativa de rompimento com a administração baseada em autoridade e hierarquia, substituindo-a por uma visão democrática e de colaboração social entre os indivíduos. O novo modelo se mostrou um tanto romantizado e distorcia as perspectivas dos trabalhadores, gerando além de frustração, improdutividade.
Atualmente se fala em modelo contingencial. Este modelo se baseia em três fatores: “as pessoas, as tarefas e a estrutura da organização” (Chiavenato, 2014). O trabalho deixa, então, de ser pensado em relação ao cargo que a pessoa ocupa como algo fixo, e passa a correlacionar esses três fatores dentro de um conjunto flexível de funções a se executar.
Embora o Brasil ainda precise sanar muitos problemas históricos, a realidade já é bastante diferente de tempos atrás. Durante os governos do Partido dos Trabalhadores – PT, por meio de lei complementar, foi criada a figura do Micro Empreendedor Individual – MEI. [8] Esse instrumento possibilitaria que cada trabalhador autônomo ou informal se formalizasse e contribuísse de forma simplificada para a seguridade social. Em contrapartida o contribuinte em dia com suas obrigações adquire o direito de auxílios emergenciais em caso de acidentes de trabalho, doença, além de formar fundos para a aposentadoria.
Evidentemente, o MEI raramente empreende de forma individual. Inclusive, de acordo com a legislação, lhe é permitido fazer a contratação de um funcionário desde que sua remuneração não exceda ao mínimo da categoria. [9] Mas, fato é que qualquer um que queira empreender em qualquer coisa, necessitará em maior ou menor grau, de contratar o trabalho de outros profissionais, assim como também será contratado.
Segundo dados do Sebrae, atualizados em 2018, 99% das empresas brasileiras são micro e pequenas empresas, e juntas empregam mais da metade da população com carteira assinada no setor privado. [10] Essa massa de brasileiros movimenta a economia e constrói as relações de trabalho diariamente em seus empreendimentos. Tratar como empreendedor o entregador do aplicativo, sem qualquer demérito da atividade, é uma forma rasa de entender o empreendedorismo, ou talvez mesmo deturpada.
Também não basta ser dono de uma empresa ou gerente para se dizer empreendedor. O empresário que não inova e não explora novos potenciais estará fadado a se adequar a nova realidade eminente, corrigindo erros e com alto nível de estresse. Ou fechará as portas.
O empreendedor deve estar disposto a correr riscos e aprender a mensurá-los, buscar desenvolver o autoconhecimento, se informar e dominar o senso crítico para fazer bons julgamentos quando necessário. Usar as oportunidades para construir a realidade. Algo semelhante ao que o professor Yurij Castelfranchi se referiu como “gambiarra epistemológica” em sua aula magna na recepção dos calouros da UFMG no segundo semestre de 2019. [11]
O CONTEXTO DO BIBLIOTECÁRIO
Como vimos, as motivações humanas podem ser benéficas ou catastróficas. E para que o ser humano se torne de fato um ativo dentro do contexto de uma organização de trabalho é preciso obter sinergias de interesses entre as pessoas envolvidas, além de um alinhamento estratégico de remuneração que relacione os esforços com os resultados.
Evidentemente, o tema se torna mais complexo quanto mais se pretenda discuti-lo. Como entender as necessidades de cada um? Como entender as próprias necessidades? Como conciliar os interesses? Como dividir os recursos?
As relações em uma organização de trabalho envolvem a consolidação de um contrato psicológico, além de outros instrumentos adequados para o propósito envolvido. Destaca-se o contrato de trabalho, políticas institucionais, princípios e valores basilares, e a atividade a ser executada.
O bibliotecário é o profissional capacitado a criar, salvaguardar, prover, selecionar e organizar a informação. Pode trabalhar pelos mais diversos meios, com ou sem vínculo empregatício, sendo funcionário ou empresário. Ou ainda como servidor público. Em qualquer caso que o insira em uma equipe, deverá exercitar o estilo de liderança e trabalhar o empreendedorismo em si e com a equipe.
Devido às inovações tecnológicas e à velocidade crescente com que acontecem, o talento para aprender coisas novas constantemente se torna essencial. Aprender a aprender, cada vez melhor.
O bibliotecário é um profissional atualizado, sempre atento às necessidades dos usuários. Como um elo entre o acervo do conhecimento humano e suas potencialidades, deve ser capaz de utilizar esse ativo intangível como uma liderança que se posiciona junto a outros líderes para o compartilhamento de valores e pesquisas.
É papel da liderança manter a equipe treinada e capacitada para realizar as atividades do dia a dia, ao mesmo tempo em que sejam atividades flexíveis e instiguem o desenvolvimento; que acompanhem as novas manifestações do pensar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A capacidade criativa do ser humana o diferencia na natureza e lhe permite criar vínculos através de entidades transcendentais. As motivações de cada um combinadas em sinergias através dessas entidades são fonte valiosa de transformação e realização, mas para isso necessitam ser trabalhadas.
O bibliotecário ocupa papel relevante na “sociedade do conhecimento”, na medida em que possibilita que a sociedade navegue pelos emaranhados de pensamentos registrados em tantas épocas, sem que se perca ou não chegue a lugar algum. Para tanto é necessário conhecimento sobre o contexto histórico e atualizações constantes, explorando novas perspectivas e contribuindo para que mais pessoas também façam o mesmo.
As relações entre os poderes das normas e poderes da cultura merecem maior investigação e reflexão aprofundada, assim como a compreensão sobre as motivações humanas e suas expressões.
REFERÊNCIAS
[1]. HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. Trad. Janaína Marcoantonio. – 24. Ed. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2017.
[2]. BRASIL. Lei Nº 3.353, de maio de 1988. Declara extinta a escravidão no Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM3353.htm. Acesso em: 19 dez. 2020.
[3]. BIBLIOTECA NACIONAL. Tráfico de escravos no Brasil. 2004. Trabalho de pesquisa Memória do Mundo – UNESCO. [S.l.], 2004. Disponível em: http://bndigital.bn.br/projetos/escravos/introducao.html. Acesso em: 19 dez. 2020.
[4]. ROMITA. Arion S. A matriz ideológica da CLT. Da Academia Nacional de Direito do Trabalho. [S.l]. Disponível em: http://www.andt.org.br/f/A_MATRIZ_IDEOLOGICA_DA_CLT%5b1%5d.pdf . Acesso em: 19 dez. 2020.
[5]. SANTOS, Silvana. Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS). [S.l.], 7 dez. 2013. Disponível em: https://administradores.com.br/producao-academica/carteira-de-trabalho-e-previdencia-social-ctps#:~:text=No%20in%C3%ADcio%20surgiu%20como%20carteira,10%20de%20outubro%20de%201969. Acesso em: 19 dez. 2020.
[6]. BRASIL. Decreto Nº 21.175, de 21 de março de 1932. Institui a carteira profissional. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-21175-21-marco-1932-526745-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 19 dez. 2020.
[7]. CHIAVENATO, Idalberto. Gestão de pessoas : o novo papel dos recursos humanos nas organizações. – 4. ed. – Barueri, SP : Manole, 2014.
[8]. BRASIL. Lei complementar Nº 128, de 19 de dezembro de 2008. Altera a Lei Complementar no 123, de 14 de dezembro de 2006, altera as Leis nos 8.212, de 24 de julho de 1991, 8.213, de 24 de julho de 1991, 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, 8.029, de 12 de abril de 1990, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp128.htm. Acesso em: 19 dez. 2020.
[9]. SEBRAE. O empregado do MEI. [S.l.], 16 de jan. 2014. Disponível em: https://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/artigos/o-empregado-do-mei,84892bf060b93410VgnVCM1000003b74010aRCRD. Acesso em: 19 dez. 2020.
[10]. SEBRAE. Pequenos negócios em número. [S.l.], 19 set. 2016. Disponível em: https://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/ufs/sp/sebraeaz/pequenos-negocios-em-numeros,12e8794363447510VgnVCM1000004c00210aRCRD#:~:text=No%20Brasil%20existem%206%2C4,MEI%20(dezembro%2F2013). Acesso em: 19 dez. 2020.
[11]. UFMG. UFMG dá boas-vindas aos novos estudantes nesta segunda. Universidade Federal do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2 ago. 2019. Disponível em: https://ufmg.br/comunicacao/noticias/ufmg-da-boas-vindas-aos-novos-estudantes-nesta-segunda. Acesso em: 19 dez. 2020.